terça-feira, 14 de setembro de 2010

Novas páginas de cultura e lazer

Pensando em voltar a divulgar páginas de literatura, restou uma dúvida: verso ou prosa? Como de outras vezes, optamos por uma dose dupla, Cecília Meireles e Fernando Sabino. O que você acha disso? Manifeste-se. Não se acanhe. Faça um comentário, sugira uma crônica, uma poesia, fale sobre aquelas palavras que marcaram sua vida. O melhor do blog é oferecer esse espaço para compartilhar. A seguir, a nossa mensagem. Aguardamos a sua!

Se não me falha a memória

Memória boa tinha aquele velho. Correu os olhos pelo cartório onde eu era escrivão e veio direto à minha mesa:
– Sr. Escrivão, meus respeitos – fez um salamaleque: – Queria que o senhor me desse informações sobre um inventário.
– Às suas ordens – e retribuí o cumprimento: – Inventário de quem?
– Já lhe digo o nome do falecido. Minha memória ainda é das melhores – apesar de ter sofrido uma comoção cerebral há poucos dias, ainda não estou inteiramente bom. Espera aí, deixa eu ver... Sou advogado há mais de quarenta anos, não esqueço o nome de um constituinte, vivo ou morto. Hoje em dia... Benvindo!
– Como?
O nome do falecido era Benvindo. Isto! Benvindo Lopes. Marido da minha cozinheira. Faleceu há pouco tempo. Ela já não está boa da cabeça e se eu não me lembrasse o nome do marido dela, quem é que haveria de lembrar? Levindo Lopes.
– O senhor disse Benvindo.
– Eu disse Benvindo? Veja o senhor!
– É Levindo ou Benvindo?
Ele ficou pensativo um instante:
– Benvindo seja – respondeu afinal, muito sério.
Depois de verificar no fichário, expliquei-lhe que deveria trazer uma petição. O velho agradeceu e saiu, assegurando-me que sim, não esqueceria. Nem dez minutos haviam decorrido e tornou a surgir na porta:
– Sr. Escrivão, já que o senhor ainda há pouco foi tão amável, e sem querer abusar, posso lhe pedir uma informação? É sobre um inventário, esqueci de lhe dizer. Minha memória é muito boa, mas sofri há dias uma comoção cerebral...
– O senhor me disse – sorri-lhe, solícito: – Qual é o inventário dessa vez?
– Inventário de... de... Não vê o senhor? A minha cozinheira... O marido dela...
– Benvindo Lopes?
– Isso! Benvindo Lopes. Como é que o senhor sabe?
– O senhor já tinha me dito.
– Mas sim senhor! Vejo que também tem boa memória.
Tornei a explicar-lhe a mesma coisa, isto é, que deveria trazer uma petição. Não esquecesse.
– Não, não me esqueço.
Agradeceu e se afastou. Deteve-se a meio caminho da porta.
– Veja o senhor! Já ia me esquecendo é do motivo principal que me trouxe aqui: a minha cozinheira, que está mais velha do que eu, perdeu o marido há pouco tempo e estou cuidando do inventário dele...
– Sabe o nome do falecido? – perguntei, sem me alterar.
– Como não? Minha memória ainda funciona, para nomes então, principalmente. Ora, pois. É Levindo não sei o quê...
– Não será Benvindo?
– Isso! Benvindo... Benvindo Lopes, se não me engano.
– Este nome não me é estranho – limitei-me a murmurar.

SABINO, Fernando. Se não me falha a memória. In: ANDRADE, Carlos Drummond de et al. Para gostar de ler. 4. ed. São Paulo: Ática, 1979, v.1, p. 61-62.

OU ISTO OU AQUILO

Ou se tem chuva e não se tem sol
ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares!

Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...
e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.

Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.

MEIRELES, Cecília. Ou isto ou aquilo. In: Ou isto ou aquilo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987, p.11.

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